Zé Bonitinho deveria morrer um pouquinho

Hell Ravani
5 min readJan 14, 2019

Desde os anos 60, mora na comédia popular o cavalo alado do velho tarado~Zé Bonitinho~ uma caricatura do galã, que vive atrás de pegar mulher, e, quase sempre se dá bem, mesmo com o fator nada demais contando no seu termômetro da mediocridade.

Em muitas esquetes, Zé Bonitinho não precisa fazer literalmente nada pra ter mulheres rastejando aos seus pés:

(Aos 3:49) Uma loira passa na frente do Zé Bonitinho e DO NADA se diz perdidamente apaixonada, a ponto de sair correndo pra beijá-lo, depois leva uns tapas. O ´Praça é Nossa´ acumulou uma boa cota de piadas que tentam minimizar a violência doméstica PQ NÉ, QUEM NUNCA NÉ MIGX- quer dizer, como se o Brasil não tivesse uma taxa altíssima de feminicídios decorrente de preconceito contra mulher…(leia aqui outro texto sobre o humor dos anos 50 que segue em alta)

Muitos podem argumentar que o Zé Bonitinho não precisa ser levado a sério porque é só uma brincadeira, mas já cansei de ver Zé Bonitinhos na vida real a.k.a. existe velho tarado em diversas instâncias, desde na praça assobiando pra adolescentes com uniforme de colégio até te espreitando no trabalho pra tentar manipular ou te encurralar.

Os Zé Bonitinhos da vida real causam mais repulsa do que empatia, sendo bem menos ridículo mas igualmente toscos ao da TV — cujo exagero tá mais praqueles cartoons dos anos 20, aliás, só falta o Zé Bonitinho flutuar e uivar quando vê uma mulher, obrigatoriamente tendo de ser jovem e seguindo o critério dele sobre padrão de beleza.

Assim como as mulheres perdem o direito de envelhecer, Zé Bonitinho não pode morrer, está fadado a ser o imortal Zé Mayer de quinta categoria. Mesmo após a morte do ator original em 2015, a TV Globo ressuscitou o personagem no remake da Escolinha, pra nos mostrar que o machismo fica velho mas não se acaba.

Mais jovem, Zé Bonitinho 2 é igualmente insuportável e eficaz

Numa timeline onde a Xuxa não pode postar uma foto de bíquini sem incitar a terceira Guerra memeal, mulheres mais velhas são incentivadas a esconderem sua idade, ao contrário do Zé Bonitinho, que pode ser um zumbi sexual engraçadinho [a vontade] , ainda exercendo um poder de charme totalmente controlador e 100% surreal sobre mulheres que aceitam suas demandas mesmo ele não sendo nada demais. Será que num país onde é normal tantas mulheres sofrerem preconceito e até morrerem pela mão de seus companheiros, ainda temos espaço prum Zé Bonitinho de segunda geração?

Não seria melhor parar de ridicularizar mulheres mais velhas só porque elas envelhecerem, ao mesmo tempo que paramos também de tratar os Zé Bonitinhos da vida real ou da TV como uma piadinha inofensiva? Sim, e é pra isso que tamo caminhando, bem lentamente, mas sem perder o pique de Lulu (santos).

Em 2001, R.Wiseman criou o Laugh Lab, uma mega pesquisa em busca da piada mais engraçada do mundo, e, pela primeira vez tivemos acesso a uma caralhada de dados sobre como o humor afeta o comportamento, contando com a participação de milhões de pessoas do mundo inteiro. Com isso, deu pra sentir mais ou menos, como os gêneros afetam nossa relação com a verdadeira graça de certas piadas. Naturalmente, mulheres acham menos engraçado piadas machistas, até porque pra nós elas não são absurdas o suficiente, nós morremos para que esses preconceitos possam sobreviver.

Scott Weems — Ha! A ciência do humor

A mulher, só tem o direito de se tornar imortal no estado Palmirinha: a doce vovó fofinha que te assa pão de queijo virgem ungido pelas formiguinhas de Jesus. Ao se aproximarem de qualquer versão mais real, caem no estigma de Dercy Gonçalves, um talento ofuscado por uma má fama injusta.
Como exemplo, a atriz Fafy Siqueira e a autora Maria Adelaide Amaral lutaram anos pra conseguir financiar um projeto sobre a vida da Dercy, porque muitas empresas não queriam associar seu nome à humorista.

“A mulher no humor sempre foi escada para o homem, a chacota, a feia, a piranha, a loira burra, a sapatão. E, hoje, são poucas as que têm oportunidade na TV” Fafy Siqueira em entrevista para o Estadão, 2012.

A solução óbvia é deixar os queridinhos ídolos machistas na onda do Zé Bonitinho morrerem de vez, virando um ponto obsoleto no espaço-tempo que chama nossa atenção dum jeito errado, como as naves espaciais de papel alumínio ou o tipão MACHOMAN do Capitão Kirk — que também é um péssimo exemplo porque segue sendo ressuscitado pela indústria.

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Podemos finalmente começar a apreciar as mulheres pelo que elas são, independente da idade, porque isso não dura pra sempre mesmo. Ainda é muito cruel a forma que recompensamos nossos símbolos femininos, ás vezes sendo forçadas a desaparecer pra satisfazer o desejo irreal da juventude eterna ou a velhice socialmente aceita das Palmirinhas.

E não tem nada de errado com ser uma senhorinha que curte tricotar ou cozinhar, mas porque parece existir um jeito certo para as mulheres envelhecerem? Caso contrário, assim como Dercy, elas acabam punidas, prejudicadas, ou de novo, empurradas a saírem de cena.

Dercy: merecidamente uma deusa imortal da comédia

Não só não é justo continuar investindo em mortos Bonitinhos, como não agrada a maioria das mulheres, sendo uma perda de tempo empurrar cadáver goela abaixo da audiência. Já passou da hora de certos hábitos perderem a vez na televisão, pra quem sabe, perder a força na vida real.

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