Porque as sobreviventes do R. Kelly responsabilizam comediantes pela manutenção da cultura do estupro

Hell Ravani
6 min readApr 22, 2020

A nova temporada de “Surviving R.Kelly" continua a elucidar a montanha de casos e relatos de violência sexual contra o cantor pop, mais famoso aqui no Brasil pela música “I believe I can fly", que estranhamente leva uma vibe gospel prum filme infantil com os looney tunes. Na época, meu colégio fez a dança de final de ano baseado nessa obra, contida no filme SPACE JAM, agora bizarra demais pra tá tatuada no meu inconsciente.

A primeira temporada da série (disponível no Netflix), traz tanta informação sobre a pedofilia rotineira do cara, vindo de tantas fontes coerentes, inclusive a Andrea Kelly, ex-mulher do cantor, que você fica se perguntando: "como ele pôde manter isso em segredo por tantos anos?” E aí você vai percebendo que R.Kelly nem se preocupou em esconder bem. O conteúdo de violência era explícito nas suas músicas, shows, performances, e, ao mesmo tempo, a quantidade de vítimas vindo a frente passou a ser tão recorrente que não tinha como a sociedade não ver, só que ao invés de levar as histórias de dezenas de mulheres a sério, transformou-se isso em piada. Em dado momento, Andrea generosamente nos esclarece essa questão do seu ponto de vista: “Ele não fez sozinho. Haviam pessoas ajudando". Ela tava se referindo ao clã próximo do cantor, que com certeza sabia do que tava rolando por debaixo dos panos e trabalhava ou pelo silêncio ou pela ignorância. Mas na segunda temporada da série (lançada agora em Janeiro), fica evidente a responsabilidade mais ampla disso tudo: a nossa, nós, do público em geral, que pecou em não querer ver o que aquelas mulheres tinham a dizer, rindo do assunto como se fosse uma piadinha qualquer.

Chapelle show e sua paródia de um vídeo sexual onde R.Kelly viola uma adolescente.

No quinto episódio, se dá um segmento sobre a narrativa dos comediantes, principalmente David Chapelle e Aziz Ansari, que participaram do caso indiretamente, fazendo piadas superficiais, capaz de arrancar risadas fáceis mas sem trazer nenhuma mudança de consciência ao espectador. Antes de destrinchar a importância disso, já quero enfatizar que sim É POSSÍVEL mudar a natureza de um pensamento com ferramentas do humor. Vamos relembrar o comediante Hannibal Buress, que só de incluir um pequeno comentário no seu set sobre o Bill Cosby conseguiu chamar a atenção para o problema real: as pessoas estavam esquecendo que Cosby era um predador sexual, e na época ele ainda tava solto, na ativa e livre pra atacar. Nem precisou muito mais do que uma simples piada pra esse pensamento viralizar, permitindo que diversas vítimas encontrassem naquilo uma plataforma pra falar sobre estupro.

Não foi H.Buress que concedeu voz para essas mulheres, algumas delas já tinham vindo a frente com a própria voz corajosa que tinham, mas antes daquela mudança de consciência, facilitada por uma piada, a maior parte do mundo não queria acreditar, e perpetuava as bases sólidas do sistema cultural que colabora com o apagamento de quem sofre violência sexual.

Podemos ver a força desse sistema bem enraizado, quando as sobreviventes do R.Kelly falam sobre as mudanças que o rebuliço da primeira temporada causou nas suas vidas um ano depois. Muitas foram perseguidas, sofreram ameaça de morte, tiveram que se mudar ou se fechar em casa com medo das represálias porque mesmo com histórias consistentes, cheias de provas, vindo de quase 50 mulheres, existe ainda uma parte considerável do público que não quer acreditar nelas e prefere culpar o seu comportamento — mesmo as que eram adolescentes durante os abusos. E é nesse ponto que a comédia poderia ter um papel fundamental, porque antes de qualquer coisa o inconsciente popular já tem a premissa de que “a culpa é da vítima”, então teria sido de extrema importância se comediantes bem estabelecidos como Chapelle ou Ansari tivessem tirado um minuto que fosse pra inverter essa lógica.

Com a repercurssão grande da série, tanto Chapelle quanto Aziz revisitaram o tema R.KELLY em suas novas apresentações de standup no Netflix, mas seguiram quase na mesma linha de antes, basicamente ignorando o sofrimento causado, e com isso, ajudando a desumanizar as sobreviventes, mesmo sem querer colaborando com o sistema injusto que sempre imperou. Aqui, quem mais me decepcionou foi o Aziz, que realmente perdeu uma ótima oportunidade de evoluir enquanto transformador dessa realidade e de atestar o quanto mudou de verdade após as acusações que ele mesmo sofreu com a abertura do movimento #MeToo.

Por anos, Azis alegou ser fã do R.Kelly, fez piadas sobre o caso e tinha um set inteiro sobre uma ida dele a um show bizarro do cantor, então depois da retomada das narrativas suprimidas pela cultura do estupro, seria O MÍNIMO oferecer uma perpesctiva diferente, mais humana, e que pudesse ter mais empatia com quem foi abusado por um monstro — que de certa forma, o próprio Aziz colaborou na criação e manutenção. Mas no novo show "Right Now", dirigido por Spike Jonze, Aziz Ansari explora o contemporâneo, em diferentes tons de voz, para gerar mais empatia para si próprio, como se ele fosse a prova viva de que as pessoas são capazes de mudar, oferecendo muito pouco conteúdo transformador de fato. É até meio constrangedor como ele agora gira a “roda da culpa" para o público, alegando que “a informação já havia sido investigada por jornais, mas agora que está empacotado num produto de entretenimento, as pessoas de repente ficaram fartas disso!”. Poderia ser uma crítica construtiva se ele tivesse tirado dois minutos que fosse pra comentar sobre a autoresponsabilidade dele como um péssimo formador de opinião, se ele tivesse reconhecido que por mais bizarra que seja a curiosidade das pessoas, esse tipo de documentário sobre celebridades vai muito além da fofoca ou de um simples ~produto de entretenimento, porque ajudou a mudar a consciência de muitos, a criar um espaço para as sobreviventes falarem abertamente e principalmente a levar o culpado para a cadeia. Então ao reduzir tudo o que aconteceu, Azis perdeu a chance de dar um basta nessa lógica sistêmica que facilita aos abusadores continuarem impunes.

Pessoalmente, isso me cansa muito e me afasta até de querer fazer comédia, porque é basicamente impossível ir num show padrão de standup sem ouvir ALGUMAS piadas sobre estupro ditas sem nenhuma ética e sem nenhuma noção da realidade que é sobreviver a isso. Tenho abordado esse assunto ao longo dos anos mas infelizmente até hoje não vi de forma eficiente um pensamento tão simples como RESPEITO penetrar na comédia brasileira. Se você é comediante, tenho uma novidade: isso não te dá aval pra desmoralizar algo tão sério e tão doloroso como se fosse nada. Esse tipo de humor poderia ser chamado de DESUMOR, porque colabora pra uma comédia fraca, antiga e mal pensada, que não funciona mais pra nossa sociedade e que nao cumpre o papel fundamental do humorista: o de participar ativamente para que as coisas evoluam.

No documentário, o humorista Michael Arcenaux dá a sua visão brilhante sob a ótica do gênero:

“Em alguns casos, o humor é feito para diminuir a seriedade do problema. Só que aqui, estamos lidando com pedofilia, algo que não deveria ser piada".

Podemos ir pra casa? Acho que tá resolvido, né? Pedofilia não é piada, estupro tá longe de ser piada, violência sexual ainda acontece todos os dias e seus autores são protegidos por uma fundação que todos nós ajudamos a perpetuar com nossos pensamentos, palavras e ações.

O que consumimos em termos de entretenimento é capaz de moldar uma consciência coletiva e se essa informação é corrupta então estamos basicamente jogando lixo nuclear um nos outros — á espera do elo mais fraco explodir para que possamos rir dele.

A parte boa é que, tem aumentado os debates incitando uma transformação real e muita gente tem estado mais aberta pra ouvir, então, se você não entendeu até agora, é bem fácil: estupro não é piada.

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